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O que leva ao deslocamento forçado? Episódio 1: Afeganistão

Entenda crise no país que gera preocupação com a situação humanitária

Por Letícia de Lucena Vaz

Avião alemão com cidadãos buscando sair do Afeganistão. Fonte: AP News.
Avião alemão com cidadãos buscando sair do Afeganistão. Fonte: AP News.

No último domingo, dia 15 de agosto o Talibã destituiu o presidente Asharf Ghani e tomou o poder na cidade de Cabul, capital do Afeganistão. O grupo volta ao poder após a chegada das tropas dos Estados Unidos e aliados ao país em 2001. A retirada dessas tropas começou a ser negociada entre o governo dos Estados Unidos e o Talibã em fevereiro de 2020. A concretização da retirada ao longo de 2021 ocorreu paralelamente à conquista de territórios pelo grupo, culminando com a tomada do poder.

A situação foi amplamente noticiada e acompanhada por imagens de pessoas tentando sair do país e buscar refúgio. Durante o governo Talibã entre os anos de 1996 e 2001, o grupo ficou marcado pela interpretação radicalista da Lei Islâmica, a qual sustentava a proibição de direitos a mulheres, como educação e trabalho, além da oposição violenta a elementos considerados como parte da cultura ocidental, como televisões e músicas.

As crises no Afeganistão fizeram o país ser o terceiro com maior número de pessoas forçadamente deslocadas. Com 5,5 milhões de pessoas nessa situação, o país está atrás apenas da Síria (13,5 milhões) e Venezuela (4,9 milhões), segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

A agência também apontou preocupação com o aumento do deslocamento forçado ao longo de 2021, sendo 270 mil novas pessoas verificadas nessa situação somente até o mês de julho (antes da mais recente crise).

Para conhecer um pouco mais essa situação, separamos oito momentos na história afegã que ajudam a entender o país e os desdobramentos mais recentes.

A história e formação do Estado afegão

Fonte: Nations Online.
Ahmad Shah Durrani, reconhecido como fundador do Afeganistão moderno. Fonte: Nations Online.

Historicamente, a região do Afeganistão foi dominada por diversos reinos e povos, como os babilônios, os macedônios, os persas, os árabes e os mongóis. O Estado começou a ser formado no país com a Monarquia Durrani em 1747, que ficaria no poder até 1978.

A dinastia Durrani é descrita pelo professor de ciências políticas Amir Saikal como marcada por conflitos pelo trono. Tais conflitos ocorriam entre os filhos dos monarcas, posto que esses eram poligâmicos e tinham muitas esposas e filhos, gerando questionamentos a respeito da linha sucessória. O professor aponta a dificuldade da criação de instituições governamentais como consequência desse cenário.

Instabilidade com Inglaterra e Rússia

Fonte:  World Digital library
Mapa mostrando os domínios ingleses (listras horizontais), russos (listras verticais) e franceses (listras diagonais) na Ásia em 1889. Fonte: WDL.

Tal instabilidade no governo ocorria paralelamente a um interesse pela região por parte de grandes potências. Nessa situação, destacam-se a Rússia (ao norte da Ásia) e a Inglaterra (com suas colônias na Índia à leste do Afeganistão, região onde atualmente se localizam Paquistão, Índia e Bangladesh). Esse período foi conhecido como o Grande Jogo.

Ao longo do século XIX, a fronteira norte do Afeganistão teve sua delimitação questionada em face dos avanços russos. Além disso, o país passou por guerras contra a Inglaterra de 1839 a 1842 e de 1879 a 1880. Em 1887, se tornou um protetorado inglês, vindo a conquistar independência em 1919 após uma terceira guerra contra os ingleses.

No século XX, já independente, o país ainda viria a contar com influências estrangeiras e instabilidades em sua história.

Golpe de 1973

Fonte: Nations Online.
Zahir Shah, último rei do Afeganistão. Fonte: Nations Online. 

Entre 1933 e 1973, o Afeganistão foi governado pelo rei Zahir Shah. O seu governo foi marcado por atritos com o Paquistão, país formado em 1948 após a independência indiana da Inglaterra e divisão do território entre Paquistão (maioria mulçumana) e Índia (maioria hindu), como relatado em matéria da BBC. Além disso, o site Nations Online aponta a ocorrência de uma aproximação com a União Soviética nesse período, denotando a continuidade da influência estrangeira no país.

Fonte: Global Security.
Daoud Khan, último membro da dinastia Durrani no poder no Afeganistão. Fonte: Global security. 

Shah se tornou o último rei do Afeganistão após ser deposto em 1973 por um golpe liderado por seu primo Daoud Khan, conforme descrito pelo portal de notícias afegão Gandhara. Khan foi o último governante afegão que fazia parte da dinastia Durrani. Em seu governo, o país deixou de ser uma monarquia e passou a adotar a república como forma de organização.

A persistência de problemas econômicos em seu governo o levou a perder apoio. Em 1978, Khan foi deposto por facções comunistas apoiadas pela União Soviética, conforme aponta o portal Nations Online.

Guerra com os soviéticos

Fonte: Unifal (MG).
Mapa da Guerra Fria, mostrando os países aliados aos Estados Unidos (em azul) e da União Soviética (em vermelho). Fonte: Unifal (MG).

 

 

 

 

 

 

 

 

As instabilidades continuaram no país durante o novo governo comunista. Um ponto chave para entender esse contexto é a busca pela implementação de um estado laico (sem religião), o que gerou grande oposição ao governo pelo medo de ameaça ao Islamismo, como aponta o historiador Daniel Neves.

Os opositores ficaram conhecidos como mujahideens, termo definido pelo dicionário Cambridge como “mulçumanos que lutam para apoiar o Islã”. Neves afirma que o crescimento desses grupos levou ao descontentamento da União Soviética com o governo instalado. Assim, em 1979, tropas soviéticas invadiram o país para conter os mujahideens, apoiados pelo Paquistão, China, Irã, Arábia Saudita e Estados Unidos, de acordo com retrospectiva realizada pela BBC. O apoio do último país, pode ser entendido dentro do contexto da Guerra Fria e da oposição entre os EUA e a União Soviética.

As tropas soviéticas só iriam se retirar do Afeganistão dez anos depois, o que foi descrito pelo jornal DW como “o seu Vietnã”, referência à derrota dos americanos para combatentes locais do país asiático ocorrida em 1975. Assim, o enfraquecimento do poder soviético é apontado como uma das consequências do conflito. Além disso, o jornal também aponta o deslocamento forçado de cerca de 3 milhões de afegãos como saldo da situação.

Década de 90: instabilidades, Guerra civil e Talibã

Fonte: G1.
Bandeira do Talibã em 17 de agosto de 2021. Fonte: G1. 

O governo comunista do Afeganistão continuou sendo apoiado financeiramente pela União Soviética até a dissolução do bloco em 1992, conforme aponta Daniel Neves. Os mujahideens continuaram combatendo o governo, levando à sua queda em 1992 e à sucessão de uma guerra civil, como noticiado pela BBC.

Em 1994, foi criado o Talibã sob a liderança de Mullah Mohammed Omar, conforme mostra o site Politize!. O grupo foi formado por membros que contestaram os governos da década de 80 e, em 1996, conseguiram chegar ao poder. O Politize! relata uma certa aceitação inicial do governo Talibã entre a população afegã pelo fato dele ter representado um fim para os longos conflitos vivenciados no país.

Entretanto, a ideia de paz associada ao grupo logo foi modificada em face do extremismo ideológico apresentado. Esse extremismo é marcado por uma intepretação da Lei Islâmica que proíbe mulheres de saírem desacompanhadas de homens e frequentarem escolas ou locais de trabalho. Outro ponto crucial é a oposição ao Ocidente.

11 de setembro: Deposição do Talibã e dispersão de seus combatentes

Fonte: Isto é.
Atentado às Torres Gêmeas. Fonte: Isto É. 

A oposição ao Ocidente é um ponto em comum entre o Talibã e outro grupo terrorista: a Al-Qaeda.

Formada majoritariamente por membros árabes, a Al-Qaeda era, inicialmente, um grupo rival do Talibã. Mas, em 1996, com a chegada do Talibã ao poder, os grupos se tornaram aliados, conforme explicado pela já referida matéria do Politize!. Uma diferença entre os dois grupos levantada pelo portal se dá em relação à sua atuação: enquanto o Talibã promove ações em âmbito local, a Al-Qaeda se propõe a um desenvolvimento internacional.

O ataque às Torres Gêmeas nos Estados Unidos no dia 11 de setembro de 2001 é um exemplo de ação internacional perpetrada pelo grupo como forma de oposição ao Ocidente. O governo americano reagiu ao ataque lançando ofensivas contra a Al-Qaeda. A permissão dada pelo governo Talibã no país por ele comandado às atividades do grupo terrorista levaram à invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos no mesmo ano, marcando o fim do governo Talibã.

O grupo, no entanto, não foi aniquilado e continuou atuando na clandestinidade, especialmente em países próximos, como o Paquistão. Os talibãs chegaram a tomar o controle em 2009 do Vale do Swat, na região Noroeste do país, forçando o deslocamento de cerca de 2 milhões de pessoas. A presença do grupo no Paquistão é relatada no livro “Eu sou Malala”, que conta a história da vencedora do Prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai. Ativista pelo direito à educação, especialmente das meninas, Malala foi baleada pelo Talibã em 2012, momento em que o grupo não mais ocupava o vale oficialmente, mas a presença de combatente ainda era relatada, juntamente com a ocorrência de atentados.

Enquanto isso, no Afeganistão, os Estados Unidos e países aliados continuavam sua presença militar. Politicamente, o Afeganistão se constituiu como a República Islâmica do Afeganistão, formando um governo democrático que, desde 2014, contava com Ashraf Ghani como presidente.

Retirada das tropas dos EUA e aliados (2020-2021)

Em fevereiro de 2020, o então presidente dos EUA, Donald Trump, e o Talibã começaram a negociar a diminuição das tropas americanas no Afeganistão, conforme noticiado pelo portal Fact Check. Em 15 de novembro de 2020, Trump assinou uma ordem executiva estabelecendo a retirada de todas as tropas até 15 de janeiro de 2021, prazo adiado para primeiro de maio.

Com o início do governo de Joe Biden nos EUA em janeiro de 2021, a retirada das tropas é prometida até o dia 11 de setembro (exatos 20 anos após o atentado às Torres Gêmeas) e depois movida para 31 de agosto.

Ao longo de 2021, o Talibã já vinha fazendo avanços no país, antes mesmo da retirada das tropas. Em 15 de agosto, o grupo chega à capital, Cabul, e é relatado que o presidente Ghani havia deixado o país, como presente no jornal CNN.

Afegãos em meio ao conflito

A escalada dessa situação ao longo de 2021 já levava a impactos humanitários graves para toda a população do país, como o aumento do deslocamento forçado. Entre as pessoas enquadradas nessa situação, a Acnur estima que cerca de 80% sejam mulheres e crianças. Outro grupo particularmente impactado pela situação é o dos hazaras, população de minoria xiita que, de acordo com o relatado pelo portal de notícias afegão Gandhara, já sofreu ataques antes mesmo da tomada de poder pelo grupo.

Diante desse cenário, a agência Acnur tem alertado para o aumento do número de refugiados e apelando para os países que não os enviem de volta para o Afeganistão.

 

 

 

 

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