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Fim da era Merkel na Alemanha

Chanceler ficou no cargo por 16 anos e atuou na crise migratória na Europa com auge em 2015

Por Letícia de Lucena Vaz

Merkel

Legenda: Ângela Merkel discursando no dia 03 de outubro. Fonte: AP.

Ocupando o poder na Alemanha desde 2005, a chanceler Ângela Merkel irá deixar seu cargo após a eleição do próximo primeiro-ministro entre os membros do parlamento alemão escolhidos nas eleições legislativas do último dia 26. Merkel já havia anunciado em 2018 que não tentaria se eleger para um quinto mandato nas eleições de 2021, conforme noticiado à época pelo jornal El País.

Em seu tempo presidindo o país, a política do partido de centro-direita União Democrata-Cristã (CDU na sigla em alemão) ficou conhecida por lidar desde questões políticas e econômicas, como o fortalecimento da União Europeia e a crise do euro, até pautas humanitárias, como a crise de refugiados no continente europeu notadamente no ano de 2015.

Sob o comando de Merkel, a Alemanha ganhou notoriedade por buscar acolher grande parte desses refugiados. Em 2020, ano mais recente com dados divulgados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a nação tinha cerca de 1 milhão e 480 mil pessoas entre refugiados, pedintes de asilo e apátridas, figurando como o sétimo país no mundo que mais recebeu pessoas nessas condições.

O país era também o membro da União Europeia com a maior quantidade de pessoas deslocadas acolhidas e terceiro na Europa como um todo em relação a esse mesmo indicador, atrás apenas de Turquia (país que mais recebe pessoas refugiadas e requerentes de asilo no mundo), com cerca de 4 milhões e Ucrânia, com cerca de 1 milhão 680 mil.

Nesse texto, trouxemos alguns pontos que marcaram a gestão da chanceler no tocante à pauta migratória.

 

Crise dos refugiados em 2015

Bálcãs DW

Legenda: Rota dos Bálcãs usada por refugiados para chegar ao interior da Europa. Fonte: DW.

Há seis anos, o grande fluxo de refugiados chegados à Europa, vindos principalmente da Síria, Afeganistão e Iraque levou a uma situação configurada como de crise. Em seu processo de deslocamento, os migrantes utilizavam embarcações improvisadas para chegar a países costeiros da Europa, como Itália e Grécia, utilizando também a chamada Rota dos Bálcãs (passando por países como Hungria e Sérvia) para chegar ao interior do continente, como apresentado no mapa acima.

Tal travessia levou a acidentes e imagens chocantes que se destacaram nos noticiários naquele ano. As situações que levaram essas pessoas a saírem de seus países, entretanto, tiveram início em anos anteriores.

A Síria, por exemplo, teve o começo de sua guerra civil em 2011 no contexto da Primavera Árabe, o que levou o número de refugiados do país a saltar de 20 mil em 2011 para cerca de 730 mil no ano seguinte, segundo a Acnur. A Agência ainda aponta que esse número continuou em alta e, em 2015, já era de quase 4,9 milhões.

O Afeganistão é perpassado por instabilidades que envolvem uma guerra contra a União Soviética nos anos 80, uma guerra civil no começo dos anos 90, a tomada de poder pelo Talibã em 1996 e a derrubada do grupo pelos Estados Unidos em 2001. Em meio a essa situação, o número de refugiados no país já é superior a dois milhões desde o ano de 1981.

Já o Iraque tem apresentado um número de pessoas deslocadas forçadamente superior a 1 milhão e meio desde 2005, segundo dados da Acnur. Essa situação, conforme relembra o portal G1, pode ser justificada pela invasão do país pelos EUA em 2003 e a mudança do grupo que ocupava o poder, o que levou a insatisfações, protestos e, a partir de 2011, uma aproximação de parte da população do grupo terrorista Estado Islâmico.

Para Beatriz Santana, mestra em Relações Internacionais pela UFMG que pesquisa a política migratória da Alemanha, o cenário verificado na Europa especificamente em 2015 foi propiciado pela chegada em conjunto desses diferentes fluxos de refugiados ao continente. Ela destaca, entretanto, o fato de que, apesar dos países europeus geralmente serem os mais lembrados ao tratar dessa situação, os países vizinhos àqueles passando por conflitos e levando sua população a buscar refúgio são os que mais a recebem.

Tal afirmação é reforçada por uma pesquisa da Acnur, a qual concluiu que 73% da população deslocada no mundo tem como destino final países fronteiriços aos seus de origem. Essa situação é exemplificada pelo Afeganistão, sendo que 59,3% dos seus deslocados se encontram do outro lado das fronteiras, no Paquistão e no Irã, enquanto 31,2% permanecem em outras regiões do próprio país, e apenas 8,6% chegam à Europa.

O Iraque se diferencia nesse cenário por ter o deslocamento interno como principal alternativa, representando 89,7% da sua população deslocada. A Síria também é uma exceção por ter 57% de seus refugiados localizados na Europa. Uma possível explicação para essa situação é o fato de que seus países vizinhos também passam por situações de conflito, como a Jordânia (que também foi palco para a Primavera Árabe) e o próprio Iraque.

 

Atuação da Alemanha

Ainda assim, a Europa recebeu uma parcela significativa desses fluxos migratórios, chegando a um total de 6,3 milhões de imigrantes somente em 2015, de acordo com a Acnur. Em face dessa situação, os países do continente se comportaram de forma diferente.

Santana destaca que países da chamada região do Servigrado, como Hungria e Sérvia, ficaram conhecidos por uma postura mais conservadora e de rechaçar migrantes. Já Portugal e França tiveram políticas mais acolhedoras, de acordo com a pesquisadora.

Foi a Alemanha, entretanto, que despontou com uma política mais ativa em receber esse fluxo migratório. Segundo dados do Eurostat relativos ao quarto trimestre de 2015, o país foi o que mais analisou e deu um parecer positivo para pedidos de asilo (foram 72.610 aceitações ou 72% dos 100.530 requerentes). A instituição aponta que os países que seguem na ordem de aceitação das análises são: 

- Itália, aceitando 9.820 ou 35% dos pedidos;

- Suécia com uma aprovação de 9.520 ou 64% das análises;

- Países Baixos, aprovando 6.685 ou 86% dos requerimentos avaliados;

- França, aceitando 6.045 ou 28% dos pedidos.

O jornal alemão DW relembra como a postura de Merkel foi marcada pela frase “Vamos conseguir”, a qual envolvia permitir a entrada até de migrantes que chegaram primeiramente a outros países da União Europeia, devendo ter requerido asilo nesses países segundo o Regulamento de Dublin.

Para Santana, as decisões de Merkel, além de uma questão humanitária, também foram sustentadas por uma possibilidade que os refugiados representam de ocupar postos de trabalho em meio a um país que passa por um processo de envelhecimento populacional, como pode ser observado no gráfico abaixo.

População Alemanha

Legenda: Gráfico mostrando o percentual que cada grupo etário representava na Alemanha entre os anos de 1960 e 2020, com destaque nos anos recentes para o aumento da população acima de 64 anos e diminuição da população até 14 anos. Fonte: elaboração própria a partir de dados do Banco Mundial.

Reação às políticas

Entre a imprensa internacional, Merkel ficou conhecida por ser uma líder pragmática e conciliadora, como presente em uma matéria da BBC. Já o poder 360 relembra o apelido de “Mamãe Merkel” como surgido inicialmente na oposição, mas posteriormente adotado por apoiadores.

Ao mesmo tempo, porém, Merkel também enfrentou críticas. O jornal DW aponta que o SPD, partido de centro-esquerda, manifestou descontentamento com a falta de detalhamento dos planos para a recepção de refugiados, além da falta de envolvimento de outros países da União Europeia ao lidar com a situação.

Tal avaliação também foi verificada por Santana em suas pesquisas, sendo que a pesquisadora aponta que, apesar das complexidades do sistema parlamentarista em que um líder prescinde mais diretamente de apoio para governar, Merkel “passava na frente de todos os outros parlamentares”, o que foi negativo para a sua imagem.

Eleições Alemanha

Legenda: Gráfico mostrando os maiores grupos partidários na Alemanha e a comparação de seus desempenhos nas eleições de 2013, 2017, 2021. Fonte: Elaboração própria a partir de dados do German Bundestag e do jornal DW.

A oposição à Merkel, entretanto, foi mais destacada entre o partido Alternativa para a Alemanha (AfD) que, como aponta Santana, despontou nas eleições de 2017 em grande parte a partir da pauta anti-migração. O partido passou de 4,7% dos votos em 2013 para 12,6% em 2017, mas caiu novamente em 2021, sendo votado por 10,3% dos eleitores.

 

Situação futura

Apesar dos resultados da eleição alemã do dia 26 de setembro já terem sido anunciados, o próximo primeiro-ministro do país ainda não foi definido. Isso porque, em um sistema parlamentar, os eleitores não escolhem diretamente o primeiro-ministro, mas sim votam nos deputados que compõem o Bundestag, parlamento alemão formado atualmente por 735 membros.

O primeiro-ministro é escolhido entre esses deputados, devendo, segundo a Lei Fundamental da República Federativa da Alemanha, atingir a maioria dos votos. Nas últimas eleições, o SPD, partido mais votado, obteve 25,7% dos votos, menos que os cinquenta por cento necessários para eleger o primeiro-ministro por conta própria. Assim, os partidos devem passar por negociações nos próximos meses, até que a maioria seja atingida para escolher o chanceler.

Portanto, a orientação do país em relação à pauta migratória ainda se encontra indefinida. Santana avalia, entretanto, que tal questão não obteve posição de destaque nas últimas eleições, dado um arrefecimento verificado na crise migratória nos últimos anos, como pode ser observado abaixo em gráfico da Eurostat.

Asilo Alemanha

Legenda: Gráfico mostra diminuição dos pedidos de asilo verificados entre 2019 e 2020 na maioria dos estados da União Europeia. Fonte: Eurostat.

A especialista também aponta que algumas das situações do mundo que mais levam pessoas a se deslocarem forçadamente na atualidade, como as verificadas na Venezuela e em Myanmar, se referem a países mais distantes da Europa e com populações mais empobrecidas. Dessa forma, ela reforça uma tendência de que tais refugiados permaneçam em países mais próximos aos seus de origem, no lugar de partir para o continente europeu.

Outro país com destaque na questão imigratória é o Afeganistão, país que tem passado por um aumento no número de refugiados desde a saída das tropas americanas e aliadas e ascensão do Talibã ao poder. Nesse cenário, a União Europeia como um todo tem se posicionado no sentido de fornecer apoio econômico para países vizinhos ao Afeganistão receberem seus refugiados. Você pode conferir alguns dos principais pontos que marcam o deslocamento afegão atual clicando aqui.

 

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