
Golpe no Sudão marca novo capítulo de instabilidades
Desde a independência em 1956, país passa por conflitos que levaram à sua divisão em 2011
Por Letícia de Lucena Vaz
Legenda: Manifestantes protestam contra golpe militar em Karthoum, capital do Sudão, no dia 25 de outubro. Fonte: AP/ Ahraf Idris.
O Sudão vem registrando protestos (imagem acima) desde que, no dia 25 de outubro, os militares decretaram Estado de Emergência e prenderam o primeiro-ministro, Abdalla Hamdock, além de ministros do governo. A situação foi vista como um golpe militar, sendo condenada pelo governo dos Estados Unidos em comunicado da Casa Branca e levando o Secretário Geral da ONU, Antônio Guterres, a se pronunciar pedindo a restauração do governo de transição civil-militar.
O referido governo havia sido instituído no país em 2019 após a deposição do presidente Omar al-Bashir. O general chegou ao poder através de um golpe em 1989 e atualmente é investigado por crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional.
Entender esses acontecimentos atuais demanda uma contextualização de eventos passados que continuam a influenciar a história do país. Nessa reportagem, separamos cinco momentos que ajudam a explicar a situação no Sudão.
Colonização dupla: Reino Unido e Egito
Legenda: Soldado em camelo das Forças Nativas do Exército Britânico no Sudão. Fonte: Foto de Frank Carpenter disponível no World Digital Library.
Diferentemente de países em que a colonização se deu por uma relação de submissão da colônia à apenas uma metrópole, o Sudão se caracterizou pela presença tanto do Egito quanto do Reino Unido durante o período colonial. Segundo o portal da Biblioteca Digital Mundial (WDL, na sigla em inglês), o domínio egípcio no país foi iniciado em 1821. O Egito, entretanto, não era um território completamente independente à época, sendo influenciado principalmente pelos Impérios Otomano e Britânico ao longo do século XIX, até a sua independência em 1922, como pontuado pela instituição International Center of Non-violent Conflict.
No Sudão, a presença dos britânicos e egípcios foi estabelecida entre 1899 e 1956, no que ficou conhecido como Condomínio Anglo-Egípcio. Na dissertação “O papel da política colonial britânica na guerra do sul do Sudão: uma análise pós-colonial”, o autor David Lin explica que, durante o período colonial, o país africano foi dividido em um território à norte e outro à sul pelo governo britânico.
O território do norte, como pontua Lin, era marcado por ser mais economicamente desenvolvido e com elites ligadas à administração colonial, enquanto o sul foi excluído de políticas voltadas para o desenvolvimento. A professora da Universidade de Coimbra e doutora em Política Internacional e Resolução de Conflitos, Daniela Nascimento, avalia que essa situação fez com que a parte sul do território estivesse privada de garantias e direitos fundamentais, sendo sua população com frequência utilizada como forma de mão de obra em regime de escravidão.
Independência e governos: o centralismo em Khartoum
Legenda: Mapa mostrando a localização do Sudão após a independência e o fim do Condomínio Anglo-Egípcio, tomando como base a estruturação atual do continente africano. Fonte: Old Maps Online.
Em 1948, foi elaborada uma Constituição que instituía eleições parlamentares locais no Sudão, as quais foram realizadas e seguidas por disputas internas entre grupos mais ligados às forças britânicas e outros às egípcias, como mostra o Memorial da Democracia. Em 1956, o Sudão tornou-se uma república independente dos dois países.
Tendo as partes norte e sul integradas no país recém-formado, o Sudão se tornou o maior país africano em extensão territorial. Entretanto, o já mencionado artigo de Lin destaca o fato de que as desigualdades entre os dois territórios e a desproporcionalidade de poder (concentrado na região norte, onde se localiza a capital, Khartoum) foram mantidas após a independência. Tal situação levou o país a rapidamente tornar-se palco de uma guerra civil, ainda em 1956.
A professora Daniela Nascimento afirma que o conflito só chegou ao fim oficialmente em 2011, com a separação da parcela sul e formação do Sudão do Sul como país, sendo o período intermediário marcado por pequenos momentos de paz instável.
Legenda: Ibrāhīm ʿAbbūd (fonte: Wikipedia), Gaafar Mohamed el-Nimeiri (fonte: NYTimes) e Omar al-Bashir (fonte: ONU/Marco Castro).
Outro marco desse período destacado pela Enciclopédia Britannica é a curta duração de um modelo de democracia liberal no país, no qual existiram partidos pouco organizados e um parlamento enfraquecido. O portal relata que, em 1958, o general Ibrāhīm ʿAbbūd conduziu um golpe militar e ficou no poder até 1964, quando renunciou em meio a protestos. As instabilidades de um governo de transição foram seguidas por um outro golpe que levou o coronel Gaafar Mohamed el-Nimeiri ao poder em 1969, sendo igualmente deposto em 1985 e substituído pelo general Omar al-Bashir em 1989 após instabilidades.
Os três governos têm em comum, além do autoritarismo e da atuação de líderes militares, o desenvolvimento de políticas contestadas pelo sul. Tais políticas envolvem a propagação da religião islâmica e da cultura árabe (mais ligada à parte norte do país, enquanto o sul é predominantemente cristão e animista), a adoção de uma constituição inspirada pela lei islâmica e a limitação da chegada de alimentos para parte sul em meio aos conflitos desenvolvidos, como listado pela Enciclopédia.
Conflitos: além da questão étnico-religiosa
Legenda: Refugiados do Sudão oriundos da região do Darfur. Fonte: BBC.
A situação de conflitos no Sudão foi um fator que contribuiu para o deslocamento forçado no país. Entre 1963 (primeiro ano com dados contabilizados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur) e 2011 (ano em que a guerra com o sul foi oficialmente encerrada), o país apresentou uma média de cerca de 250 mil refugiados por ano, segundo dados do Acnur.
O embate entre as duas partes do país é com frequência pensado como decorrente das diferenças étnicas e religiosas existentes, sendo o sul predominantemente cristão e o norte, mulçumano. Entretanto, a doutora Daniela Nascimento afirma que essa é uma análise que parte de uma leitura simplista da realidade, enquanto um olhar mais criterioso leva à percepção de questões econômicas e sociais subjacentes, sendo fatores como etnia, religião e raça frequentemente instrumentalizados pelos atores envolvidos.
É partindo da consideração da centralidade das questões econômicas e da desigualdade para entender esses conflitos, que o historiador Daniel Lin defende em seu artigo a tese de que a administração colonial britânica, durante a qual tal situação teve início, está ligada ao conflito subsequente.
Duas das principais tentativas de pacificar o conflito foram os acordos de Adis Abeba (assinado em 1972 e pondo fim à primeira guerra civil sudanesa) e de Naivasha (assinado em 2005 e acabando com a segunda guerra civil). Nascimento se diz cética em relação aos referidos tratados, avaliando que a negociação:
“[...] deixa imensas pontas soltas do que é a verdadeira capacidade de pôr fim à violência” e “criar condições econômicas, políticas e sociais que levassem à paz”.
O primeiro tratado viu a sua efetividade se esvair 11 anos depois, em 1983, com a retomada do conflito. Buscando uma maior efetividade, o compromisso firmado em 2005, propôs o aumento da autonomia do sul e a realização de um referendo seis anos depois, em 2011, no qual a população do sul poderia optar pela independência, como relatado em matéria da ONU em 2009. Sobre tal proposta, a professora Daniela Nascimento afirma:
“Se a intenção era efetivamente tornar a unidade atrativa e criar estabilidade no território sudanês, a opção pelo referendo foi mal calculada. As condições do acordo não colocavam nenhum tipo de obrigação ou de pressão sobre o governo sudanês de criar condições atrativas para a unidade ao sul”. “Era inevitável que durante seis anos de mais do mesmo, a população votasse a favor da independência”
Referendo em 2011: nasce o Sudão do Sul
Legenda: comemoração da independência do Sudão do Sul em 2011. Fonte: ONU.
Em 2011, após 55 anos de existência do Sudão como país e 55 anos de conflitos com breves momentos de paz, o referendo foi realizado e 98,8% da população do sul do Sudão votou a favor da independência do território, como noticiado pelo G1 à época. A independência, entretanto, não era o principal objetivo do movimento do sul desde o princípio da guerra em 1956. Nascimento relembra que:
“Em nenhum discurso do John Garang [líder de grupo defensor do sul] há uma referência à independência do sul do Sudão. A reclamação, pelo contrário, era ser um movimento extra-sul reclamando um novo Sudão, um Sudão redefinido do ponto de vista das políticas de inclusão”.
Após a independência, o Sudão do Sul teve que enfrentar diversos problemas relacionados à infraestrutura e administração. Um desses problemas, como apontado pelo portal de notícias All Africa, se relaciona à questão do petróleo, insumo muito presente no território, mas o qual requer tecnologias e recursos para ser explorado com os quais o governo não conta, tornando-o dependente de ajuda estrangeira. Outro problema é a indefinição das fronteiras das reservas com a antiga parte norte do Sudão e a necessidade de escoar o produto por portos sudaneses (já que o Sudão do Sul não possui saída para o mar), o que gera frequentes embates entre os dois vizinhos.
A nova nação também sofre com questões internas, sendo a eclosão de violência monitorada pela Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS, na sigla em inglês) desde 2013. Assim, o país mais novo do mundo tragicamente logo se tornou o quarto país com mais pessoas deslocadas no mundo (atrás de Síria, Venezuela e Afeganistão), com 2,2 milhões de pessoas na condição de refugiadas em 2020 (ano em que completava apenas nove anos de existência), segundo dados do Acnur.
Protestos em 2019 e golpe em 2021: instabilidades entre militares e civis
As instabilidades políticas na última década também puderam se verificar na parte norte do Sudão. Em dezembro de 2018, o G1 reportou o começo de protestos contra o governo de Omar al-Bashir que se alastraram e culminaram com a sua deposição em abril, após 30 anos no poder.
Alguns dos fatores enumerados pela reportagem que levaram às manifestações foram as dificuldades econômicas enfrentadas pelo país, a culpa atribuída à gestão pela separação do Sudão do Sul (a qual levou à perda de recursos petrolíferos que aprofundaram a situação econômica) e a investigação promovida contra al-Bashir no Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra. A denúncia se refere aos conflitos na região do Darfur, que ocorrem desde 2003 e têm como saldo cerca de 300 mil mortos, segundo estimativas da ONU.
Bashir foi julgado por corrupção em dezembro de 2019 e entregue ao TPI em agosto de 2021, como mostra o G1. Após sua saída, foi instaurado um governo de transição composto por civis e militares, havendo a promessa de eleições democráticas para 2023. O golpe instituído por militares no dia 25 novamente traz incertezas sobre o futuro do país. A situação foi acompanhada por protestos, entre os quais, apenas nos cinco dias subsequentes, foram relatadas 12 mortes e 300 pessoas feridas segundo o UOL.