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Direitos, Nobel da Paz e refugiados

Premiação concedida há 120 anos, desde 1901, trouxe laureados ligados à temática do deslocamento forçado em diversas edições

Por Letícia de Lucena Vaz

Nobel 2021

Legenda: jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov. Fonte: Nobel Prize.

Em 2021, a 102º edição do Prêmio Nobel da Paz foi concedida aos jornalistas Maria Ressa (dona do site de notícias Rappler nas Filipinas) e Dmitry Muratov (editor do jornal Novaya Gazeta na Rússia). O Comitê Norueguês do Nobel justificou a escolha dos laureados por “seus esforços em proteger a liberdade de expressão, a qual é uma pré-condição para a democracia e para a paz duradoura”.

A premiação foi acompanhada de debates a respeito de direitos como liberdade de imprensa e de expressão, extrapolando as temáticas específicas vivenciadas na Rússia e nas Filipinas. Dessa forma, o Comitê apontou Ressa e Muratov como “representantes de todos os jornalistas que defendem esse ideal em um mundo no qual a democracia e a liberdade de imprensa encaram condições crescentemente adversas”.

Embora os jornalistas premiados tenham permanecido em seus países, as perseguições por eles enfrentadas encontram paralelos com situações vivenciadas por refugiados. Na Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiados de 1951, a ONU definiu refugiado como uma pessoa que “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade” e “em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”.

Nessa reportagem, abordamos a questão da liberdade de expressão no mundo, com destaque para a situação de Rússia e Filipinas. Além disso, relembramos nove momentos em que a temática do deslocamento forçado esteve diretamente presente nos agraciados pelo Prêmio Nobel da Paz em seus 120 anos de história.

Liberdade de expressão: Rússia e Filipinas

Liberdade de imp.

Legenda: Mapa classificando os países de acordo com a situação da liberdade de imprensa. Em branco são os países com situação ótima; amarelo, situação boa; laranja, situação problemática; vermelho, situação grave; preto, situação muito grave. Fonte: Repórteres Sem Fronteiras.

A Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa de 2021, divulgada pela organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), concluiu que, dos 180 países analisados, apenas 12 (7% do total) se encontravam em ótimas condições em relação a tal indicador. Os demais eram classificados em situações boas, problemáticas, graves ou muito graves.

Nesse cenário, tanto as Filipinas quanto a Rússia foram classificados como países com situações graves, ocupando as posições 138 e 150 do ranking, respectivamente (Brasil também é colocado na categoria grave, ocupando a posição 111). Além disso, seus governantes (o filipino Rodrigo Duterte e o russo Vladimir Putin) foram classificados pela instituição como “predadores da liberdade de imprensa”.

Duterte

Legenda: Presidente filipino Rodrigo Duterte, no poder desde 2016. Fonte: Wu Hong-Pool/Getty Images

Duterte, eleito em 2016, ficou conhecido por atacar jornalistas desde o seu discurso de posse, no qual, conforme relata a RSF, afirmou: "Não é por ser jornalista que você estará protegido de assassinato, se você for um filho da p***." Outras ações do presidente compiladas pela organização envolvem comprar jornais, como o Philipinnes Daily Inquirer para mudar sua linha editorial, e promover uma campanha de assédio judicial contra jornalistas como Ressa, que enfrenta dez mandados de prisão.

O jornalista João Paulo Charleaux aponta tal estratégia como uma forma de promover uma perseguição à imprensa enquanto a fachada de regime democrático é mantida. Subterfúgio semelhante pode ser observado no cenário russo, no qual, desde 2017, vigora a chamada “lei de agentes estrangeiros”.

Putin

Legenda: Presidente russo Vladimir Putin, no poder desde de 2000. Fonte: Adam Berry/Getty Images.

O Novaya Gazeta (jornal do qual Muratov é editor) descreve a obrigatoriedade imposta por essa lei de que os jornais determinados como financiados por agentes estrangeiros tenham todas as suas publicações acompanhadas por esse selo. Tal classificação, entretanto, é imposta de forma controversa, sem que possa ser contestada pelas empresas afetadas, as quais estão sujeitas a pesadas multas caso não cumpram as determinações.

Charleaux sinaliza a dificuldade de que esse cenário passe por mudanças em breve, destacando a popularidade de Duterte apesar de suas ações e a possibilidade de que Putin continue à frente do poder russo até 2036, com base em emendas por ele aprovadas que permitem um maior número de reeleições.

O repórter destaca que o cenário em questão, embora afete mais diretamente o jornalismo, não se limita a ele, afirmando que a defesa da liberdade de imprensa “não é uma defesa corporativista do direito de informar, mas uma defesa ampla do direito de ser informado”. Mesmo assim, ele pondera que, para o caso da Rússia e das Filipinas, no geral, os ataques que concretizam a limitação desses direitos possuem um recorte mais pessoal, se diferenciando de países em que grupos étnicos, religiosos ou políticos são sistematicamente perseguidos pelo Estado.

Nesse quadro, por exemplo, se encontram os rohingyas em Myanmar, minoria étnica mulçumana alvo de diversas ondas de violência, sendo que uma delas, em 2017, levou cerca de 742 mil pessoas a buscarem refúgio, segundo dados da Acnur. Assim, apesar das possíveis semelhanças encontradas entre a situação das três nações pela existência de uma restrição da liberdade dos indivíduos, o fato das duas primeiras terem ações com foco mais restrito faz com que não sejam verificadas grandes ondas de refugiados com origem em seus territórios.

Tais momentos, entretanto, em que grandes massas se deslocam forçadamente em consequência de situações de supressão de direitos, acontecem e aconteceram diversas vezes ao longo da história. Por esse motivo, a temática dos refugiados é recorrente na sociedade e diversas vezes esteve presente na escolha dos laureados pelo Comitê do Prêmio Nobel da Paz, como compilado a seguir.

 

Deslocamento forçado e premiação

Infográfico

Jean Henry Dunant e Comitê Internacional da Cruz Vermelha: Prêmio Nobel da Paz de 1901 e 1917, 1944 e 1963, respectivamente

Um dos contemplados pela primeira edição da premiação, Dunant é descrito como “pai da Cruz Vermelha” no site da instituição. O prêmio lhe foi concedido “por seus esforços humanitários de ajudar soldados feridos e criar uma compreensão internacional”.

A relação de seu trabalho com o deslocamento forçado se dá pelo fato de a Cruz Vermelha atualmente fornecer apoio a vários grupos, entre eles deslocados internamente, refugiados e requerentes de asilo. O próprio Comitê Internacional da Cruz Vermelha foi a instituição escolhida para ser agraciada com o prêmio três vezes: em 1917, 1944 e 1963.

 

Fridtjof Nansen e Comitê Internacional Nansen para os Refugiados: Prêmio Nobel da Paz de 1922 e 1938, respetivamente

Nansen era cientista e explorador, mas o que motivou a sua condecoração com o Nobel foi “seu trabalho pioneiro na repatriação de prisioneiros de guerra, no trabalho de assistência internacional e como Alto Comissário para refugiados da Liga das Nações”. A Unesco descreve a Liga das Nações como um organismo internacional criado em 1920, no contexto do fim da Primeira Guerra Mundial, para evitar catástrofes e fortalecer o multilateralismo. A organização, entretanto, não conseguiu evitar a Segunda Guerra (1939-1945), sendo suas ideias retomadas após o fim do conflito e dando origem à Organização das Nações Unidas em 1945.  

A Acnur descreve os esforços de Nansen como responsáveis por ajudar centenas de milhares de refugiados a voltarem para suas casas ou encontrar trabalho nos países onde se refugiavam. Reconhecendo a dificuldade enfrentada pelos refugiados com a falta de documentos de identificação, ele criou o primeiro instrumento jurídico para a proteção internacional de refugiados, que ficou conhecido como “Passaporte Nansen”. A ajuda para refugiados continuou sendo efetivada pelo Comitê Internacional Nansen para Refugiados, o qual recebeu o prêmio de 1938.

 

Ralph Bunche: Prêmio Nobel da Paz de 1950

O primeiro afro-americano a receber a homenagem, Bunche foi um cientista social que atuou como mediador da ONU durante a divisão da Palestina entre árabes e judeus entre 1948 e 1949, chegando a um cessar fogo. Novas ondas de conflito, entretanto, acontecem até os dias atuais, sendo que cem mil palestinos se encontravam como refugiados em 2020, segundo dados do Acnur.

 

Nações Unidas: Prêmio Nobel da Paz de 1954, 1981, 1988, 2001 e 2020

A Organização das Nações Unidas foi homenageada pela premiação em diversos momentos pela atuação em causas humanitárias, as quais por vezes envolveram o trabalho com refugiados, especificamente. Em 1954 e 1981, a menção ocorreu através do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Em 1988, foi a vez das Forças de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Já em 2001, a ONU como um todo recebeu o prêmio e em 2020 ele foi dedicado ao Programa Mundial de Alimentos.

 

Georges Pire: Prêmio Nobel da Paz de 1958

Líder da Organização de Assistência para Refugiados, Pire atuou em campos de refugiados na Áustria organizando voluntários e distribuindo roupas, comida e medicamentos. A sua nomeação foi motivada por “seus esforços em ajudar refugiados a sair de seus campos e retornar para uma vida de liberdade e dignidade”.

 

Yasser Arafat, Shimon Peres, Yitzhak Rabin: Prêmio Nobel da Paz de 1994

Assim como em 1950, o Comitê do Nobel da Paz contemplou a questão dos conflitos no Oriente Médio. Dividiram a condecoração o Líder da Organização pela Libertação da Palestina (Araft) e dois membros do governo israelense (Peres, ministro das Relações Exteriores e Rabin, primeiro-ministro), sendo os três envolvidos na formulação do Acordo de Oslo buscando trazer paz para a região e evitar conflitos que levem a movimentos populacionais para fugir da situação.

 

Carlos Filipe Ximenes Belo e José Ramos-Horta: Prêmio Nobel da Paz de 1996

Belo e Ramos-Horta foram reconhecidos “pelo seu trabalho em direção a uma solução justa e pacífica para o conflito em Timor-Leste”. A história do país, como mostra a Enciclopédia Britannica foi marcada pela dominação de Portugal até 1975 e da Indonésia até 2002, tornando-se palco para vários conflitos. A Acnur começou a divulgar dados sobre o país apenas em 1999, ano em que o país registrou cerca de 160 mil refugiados em decorrência da situação.

 

Médicos sem fronteiras: Prêmio Nobel da Paz de 1999

A organização foi reconhecida por seu trabalho humanitário em diversos países, sendo a atuação em momentos de guerras ou catástrofes ambientais que levam a grandes deslocamentos destacada.

 

Malala Yousafzai: Prêmio Nobel da Paz de 2014

Sendo a mais jovem laureada com o prêmio, Malala lutou pelo direito de educação para garotas, o que a fez ser alvo de um ataque promovido pelo Talibã em 2012. Desde então, Malala vive como refugiada com sua família no Reino Unido. Mais sobre sua vida pode ser conferido aqui na resenha de sua autobiografia, “Eu sou Malala”.

 

 

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