O DILEMA DA NOVA CRISE DE REFUGIADOS NA EUROPA
Em entrevista com um especialista em relações internacionais, tentamos entender um pouco da situação atual na Europa
Por Güinewer Inaê
Estima-se que desde o começo do conflito atual entre a Rússia e a Ucrânia, por volta de 3 milhões de pessoas foram forçadas a deixar o território ucraniano e buscar refúgio em outro país. Em menos de um mês de conflito, mais que o dobro de refugiados chegaram ao resto da europa do que na tão polêmica crise de refugiados de 2015, em que, segundo dados da Acnur, cerca de um milhão e trinta e duas mil pessoas buscaram asilo na Europa ao longo do ano inteiro. A situação atual vai muito além de qualquer outra crise de imigração no último século, no entanto há uma clara diferença de tratamento pelos países atingidos.
A recepção dos refugiados ucranianos se tornou um grande projeto comunitário da Europa Continental. Um exemplo claro é o da Polônia, que atualmente abriga cerca de 2 milhões de ucranianos. O país abriu suas fronteiras quase imediatamente, no entanto, durante a primeira crise com os refugiados do Oriente Médio, foi acusado pela União Europeia de não cooperação nas obrigações de relocação de refugiados. Protestos até mesmo foram feitos contra a recepção de pessoas buscando asilo em seu território, um marco claro na diferença entre o país que hoje faz campanha para apoiar os ucranianos atravessando suas fronteiras.
Outros exemplos foram vistos por toda a Europa, a discriminação violenta contra refugiados do Oriente Médio e África discrepante com a recepção calorosa dos ucranianos. Países eslavos como a Dinamarca facilitam a chegada de imigrantes da Ucrânia enquanto pedem pela saída de sírios enquanto o conflito e o deslocamento forçado na região ainda estão em progresso. Surge então a questão intrigante: o que torna um grupo mais aceitável que o outro quando todos precisam de ajuda?
Com isso em mente, conversamos com João Henrique Roriz. Coordenador Geral da CSVM/UFG e especialista em direito internacional em busca de possíveis respostas.
Na sua visão, de uma forma geral, como explicaria essa crise atual?
JOÃO: Como se explica essa crise atual? Bem, essa é claramente uma crise de segurança, é uma guerra, não tem outra palavra. E em termos de direito internacional ela é uma agressão de um país com relação ao outro. Há argumentos utilizados pela Rússia, mas esses argumentos não são uma justificativa dentro do enquadramento do direito internacional para justificar uma ação legítima. Então é uma guerra de agressão da Rússia para com a Ucrânia, que tem como consequência, dentre outras coisas, uma grave crise migratória de pessoas fugindo por questões da sua segurança, da sua vida.
Considerando que durante a crise Síria na década passada muitos países disseram não haver como suportar tantos imigrantes em tão pouco tempo, o que acha que diferente da situação atual, ainda mais com o contexto da pandemia?
JOÃO: Bom, essa segunda pergunta, ela mostra muito o que várias pessoas, vários analistas, sobre imigração e refúgio de direitos humanos de uma forma geral, têm dito sobre a seletividade de países ao receber migrantes de guerra, né? É… então eu acho que o critério racial e o critério cultural são elementos que não se assumiam frente a outros casos como esse que você citou como esse da Síria, mas a gente também pode falar do Norte da África, do Afeganistão, de uma certa forma de países do terceiro mundo. E se questionava a própria legitimidade de alguns desses imigrantes, se desconfiava das suas intenções ou da legitimidade dos seus pleitos em detrimento agora do caso ucraniano. Que também são refugiados e que também merecem todo o apoio e toda proteção que o direito internacional e o direito doméstico dão a essas pessoas, e os direitos humanos, mas existe uma discriminação clara em favor de pessoas brancas, entendidas como europeias, em detrimento de outras não brancas vindas do terceiro mundo.
É possível que a aproximação cultural entre a Ucrânia e o resto da Europa facilite esse apoio dos outros países? Ou é uma questão mais histórico-política?
JOÃO: Eu não sei se eu faria uma diferenciação de uma aproximação cultural e uma questão histórico política, eu acho que todas estão inter relacionadas, mas a partir da ideia de que a Ucrânia é parte da Europa, existe uma questão de identidade. Então os ucranianos são considerados europeus, são próximos culturalmente de vários países, principalmente dos países bálticos, fazem parte de uma cultura eslava de uma forma mais geral, tem vínculos histórico-políticos com o restante da Europa, portanto fazem parte do que é considerado a grande Europa. E assim, com certeza isso é o que influencia a decisão da Europa de ir em socorro a essa população.
A presença dos Estados Unidos como aliado também teria algum efeito?
JOÃO: Sim, acho que a presença dos Estados Unidos na Europa é constante desde o final da Segunda Guerra Mundial, existem uma série de instituições como a OTAN, mas há outras também. Nas organizações internacionais, geralmente os países da Europa votam de uma forma muito próxima dos Estados Unidos, então são aliados históricos e o ponto de conexão dessa aliança em termos militares é a OTAN. A Organização do Tratado do Atlântico Norte aproxima Estados Unidos e Europa, ou vincula - melhor dizendo - Estados Unidos e Europa, e não tem como separar os Estados Unidos dessa crise. Eles estão dentro tanto da justificativa do Putin tanto quanto do pleito da Ucrânia de fazer parte dessa aliança. Então é um ator indissociável dessa crise.
A cobertura da mídia, não só da mídia tradicional mas das redes sociais também, tem um impacto sobre a decisão desses países e se sim pode elaborar um pouco?
JOÃO: Sim, a mídia sempre tem um papel muito significativo na formação de opinião pública, que é extremamente importante em termos de guerra, ou tem sido crescentemente na história, importante né. Se a gente olhar para as guerras do passado, a gente vai ver que existia sempre disputa de narrativas, que geralmente é travada não só no âmbito governamental mas principalmente no âmbito da mídia, às vezes em conexão, quase sempre na verdade, em conexão com o âmbito governamental. E o que a gente tem visto nos dias de hoje é uma repetição de certa forma de algumas narrativas mais consolidadas aqui no Ocidente, em detrimento de outras que tem uma cobertura, por exemplo, mais pró-Rússia, ou um pouco mais distante da ocidental em países do terceiro mundo. Então as narrativas midiáticas, eu acho que elas dependem do lugar e dos interesses das pessoas envolvidas. E aí sobre mídias sociais, eu acho que esse é um fenômeno muito visível, muita gente tem acompanhado a guerra pelo twitter, né? Vendo videos quase que simultaneamente com o que acontece, portanto eu acho que as mídias sociais dão uma nova configuração para isso, elas diminuem um pouco a vinculação entre o que o Estado quer que seja narrativa e o que a mídia tradicional faz com que seja narrativa, e eu acho que essa é uma nova configuração interessante para a gente observar.
De agora em diante, o que acontece com todos esses refugiados em seus novos países? É possível que se re-estabeleçam ou você acredita que estamos diante de uma crise sem previsão de fim e solução?
JOÃO: Eu acho que fazer previsões assim é bem complicado, mas dando alguns elementos para a gente começar a pensar. Então, existem três tipos de chamadas soluções - eu não gosto muito dessa palavra, mas é o que geralmente se encontra na literatura - para a questão dos refugiados. Uma é integração no local, ou seja, essas pessoas passam a ser parte da população que habita um determinado lugar, elas são incluídas dentro dessa população, da população local que a recebe. Tem o repatriamento, que é a volta dessas pessoas para seu lugar de origem, isso acontece geralmente quando acaba uma guerra e as pessoas voltam para sua casa. E a ida dessas pessoas para um terceiro país, né? As vezes elas não se conectam, sofrem discriminação no pais onde elas chegam e elas acabam indo para um terceiro país. É muito difícil, senão impossível, de fazer qualquer tipo de previsão do que vai acontecer, acho que isso depende muito mais da disposição das partes de negociar de chegar a um cessar fogo, o que não tem parecido muito provável, pelo menos nesse curto prazo. Agora, a situação de guerra geralmente é uma situação de desgaste muito sério no longo prazo, de guerra, não de instabilidade. Eu acho que a de instabilidade é algo até que o governo russo quer de certa forma, se ele mantém a Ucrânia instável, é mais difícil de uma Ucrânia entrar em instituições como a OTAN, e portanto talvez isso seja até parte da intenção russa manter a situação um pouco mais instável no longo prazo, mas não necessariamente na guerra como ela está hoje. Então, acho que a situação está muito embaralhada ainda, está um cenário muito complexo, muito difícil de fazer qualquer tipo de previsão, mas acho que a curto prazo ainda a situação vai continuar muito difícil.