NOTÍCIA CÁTEDRA

Tecendo visões de mundo indígenas em meios de subsistência digitais

No Brasil, o ACNUR, o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR) e outros parceiros estão trabalhando com artesãos indígenas deslocados para levar oportunidades de comércio eletrônico às comunidades locais

Argenia Centeno, artesã indígena deslocada da Venezuela para o Brasil, foi uma das 19 participantes do projeto. Foto: ACNUR Brasil

O deslocamento forçado é uma experiência devastadora para qualquer pessoa. Mas, para as comunidades indígenas, essa ruptura apresenta desafios únicos. A relação profundamente enraizada entre os povos indígenas e a terra – uma relação que é fundamental para a identidade individual e coletiva, práticas culturais, bem-estar psicossocial, e sistemas econômicos e sociais – torna o deslocamento uma ameaça existencial. Além disso, os grupos indígenas correm um risco maior de discriminação quando são forçados a se deslocar.

No Dia Internacional dos Povos Indígenas, conheça um projeto que trabalhou em estreita colaboração com artesãos indígenas deslocados no Brasil não apenas para aumentar as oportunidades de subsistência por meio do comércio eletrônico, mas também para garantir que as tradições, os idiomas e as histórias indígenas sejam mantidos em segurança durante o deslocamento. Lado a lado com os refugiados, esse projeto – apoiado pelo Fundo de Inovação Digital do ACNUR – promoveu a inclusão digital, o bem-estar social e a autossuficiência.

O desafio

Desde 2014, de acordo com o ACNUR Brasil, mais de 10.000 indígenas deixaram a Venezuela em direção ao Brasil. A maioria pertence ao grupo étnico Warao, cujo lar ancestral é a floresta tropical venezuelana. Outros grupos incluem os Eñepá, Kariña, Pemon e Wayúu.

A cidade de Boa Vista, em Roraima, recebe o maior abrigo para refugiados e migrantes indígenas da América Latina. Lá, a equipe do ACNUR Brasil identificou a necessidade de desenvolver soluções específicas para essa população – soluções que valorizem as diversas habilidades, culturas e perspectivas que eles trazem para as áreas onde buscam refúgio.

O ACNUR colabora ativamente com as comunidades indígenas para aprimorar suas habilidades e oferecer treinamento para se alinhar às demandas do mercado. Essas iniciativas de subsistência se concentraram predominantemente na confecção de artesanato tradicional. Entretanto, embora os artesãos deslocados (principalmente mulheres) produzam um artesanato excepcional, eles enfrentam desafios significativos para vender suas criações. Sua localização na bacia amazônica apresenta dificuldades de acesso aos mercados, e as despesas associadas ao estabelecimento de uma presença física no varejo e as limitações na experiência de atendimento ao cliente criam outras barreiras.

Tecelagem de fibra de buriti, em Boa Vista. Foto: ACNUR Brasil

“É necessário reconhecer que, com muita frequência, deixamos de fornecer as plataformas e os meios de treinamento necessários para as comunidades indígenas”, diz Oscar Sanchez Pineiro, Representante Adjunto do ACNUR no Brasil. “Esse descuido pode resultar em uma divergência entre seus ricos valores culturais e suas aspirações em uma economia e sociedade em rápida evolução”. Pineiro destaca a tendência de estereotipar as culturas indígenas como remanescentes da história. Em vez disso, elas devem ser reconhecidas como componentes indispensáveis de nosso tecido social e capacitadas para florescer em um cenário digital contemporâneo, ao mesmo tempo em que salvaguardam suas visões de mundo e patrimônio cultural distintos.

A solução

Em Roraima, o ACNUR trabalhou com parceiros e comunidades locais para introduzir um currículo de treinamento em comércio eletrônico que visa equipar os artesãos indígenas com ferramentas, habilidades e técnicas digitais. O objetivo é permitir que esses artesãos expandam seus negócios e obtenham meios de subsistência mais sustentáveis, exibindo e comercializando seus produtos on-line de forma eficaz.

Dez mulheres e nove homens dos povos Warao, E’ñepá, Karamakoto e Taurepang participaram desse projeto piloto. Embora trabalhem principalmente com a fibra de buriti – uma fibra semelhante à seda derivada de uma palmeira encontrada em toda a América Latina, que pode ser tingida, processada e tecida em produtos como cestas, bandejas, bolsas e decorações de parede – vários desses artesãos também são adeptos do artesanato em argila e do entalhe em madeira. Alguns até trouxeram novas ideias de negócios de ecoturismo para o treinamento.

Argenia Centeno participando de uma oficina. Foto: ACNUR Brasil.

Os participantes desempenharam um papel fundamental na definição da concepção do projeto e de suas próprias jornadas de aprendizado, uma abordagem que funcionou para preservar sua autonomia e garantir seu apoio ao processo. A artesã Argenia Centeno explica:

“Em cada reunião, expressamos o que estava faltando como apoio social e isso foi considerado – por exemplo, as técnicas de vendas, tirar fotos, como seguir em frente.”

Por meio de consultas, os participantes identificaram as habilidades que esperavam adquirir e determinaram que uma modalidade de tempo dividido garantiria que o treinamento pudesse ser encaixado em outras demandas. O currículo, que abrangeu tópicos que vão desde alfabetização financeira e leis de proteção de dados até fotografia digital, marketing corporativo e mídia social, foi ministrado em um curso intenso de um mês.

Produtos de fibra de buriti feitos pelos participantes do projeto. Foto: ACNUR Brasil/Diane Sampaio.

Iniciado e financiado pelo ACNUR, o projeto foi realizado pelo Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), juntamente com outros parceiros. Um forte relacionamento com a Associação de Migrantes Indígenas de Roraima (AMIR) – uma organização composta por povos indígenas venezuelanos –mostrou-se crucial. Como uma representação direta da comunidade, a AMIR fortaleceu o envolvimento comunitário do projeto e garantiu que seu impacto fosse além dos abrigos de Boa Vista.

O impacto

Para os participantes, os elementos técnicos do curso abriram novos caminhos para o crescimento de seus negócios. Mas, talvez ainda mais crucial, o foco narrativo dos instrutores – uma ênfase na exploração de como os produtos dos artesãos refletem e celebram sua história, herança e ancestralidade – teve um efeito transformador.

“Nós, como Warao, discutimos como eram nossas vendas, nossa cultura, nosso conhecimento e também as outras etnias indígenas”, explica Centeno. A conscientização de que a cultura transmitida por gerações tinha um valor poderoso para outras comunidades além da sua própria e que merecia desempenhar um papel fundamental em suas estratégias de geração de renda teve um impacto notável na autoestima e no bem-estar dos participantes.

Embora o período de aprendizado tenha sido curto e intenso, os participantes saíram com percepções valiosas que ajudaram a expandir seus negócios e proporcionaram maior segurança econômica. Para Bruno Avilio, um dos participantes:

“O projeto me ajudou a superar muitas coisas. O mais importante foi o conhecimento em vendas, como vender nossos produtos no Instagram, tirar fotos, como publicá-las e tudo mais. Foi bom saber como enviar mensagens e como conseguir responder aos clientes no mesmo dia.”

Centeno também comenta sobre o valor desse elemento técnico:

“Depois do projeto, minha capacidade como vendedor, artesão e empresário melhorou principalmente, porque perdi o medo e ficou mais fácil. Agora vendo on-line, via WhatsApp, apresento meus produtos.”

Para o ACNUR, esse projeto também serviu como uma valiosa experiência de aprendizado. Embora a agência já esteja envolvida em várias iniciativas dirigidas por refugiados indígenas ou centradas neles, esse empreendimento forneceu informações importantes sobre os talentos criativos e a perspicácia empresarial dessas comunidades. Ao fazer isso, abriu possíveis caminhos para futuras colaborações com comunidades indígenas forçadas a se deslocar, com foco no aprimoramento de sua integração socioeconômica.

No futuro, poderão ser encontradas sinergias entre essas iniciativas e a plataforma de comércio eletrônico Made 51, projetada pelo ACNUR justamente para permitir que os artesãos refugiados alcancem novos mercados.

Com sua ênfase na autossuficiência, na participação equitativa e no envolvimento local, o projeto não apenas apoia as comunidades no desenvolvimento de negócios prósperos, mas também defende suas culturas materiais ricas em narrativas. Ao desafiar os estereótipos que veem os povos e as tradições indígenas como congelados no tempo ou como um mundo à parte, ele abre espaço para novos entendimentos e oportunidades para essas comunidades, como fios fortes e essenciais no complexo tecido de nosso mundo moderno.

Fonte: https://www.acnur.org/portugues/2023/08/09/tecendo-visoes-de-mundo-indigenas-em-meios-de-subsistencia-digitais/

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